sábado, 25 de agosto de 2012

Resenha de "O crime do padre Amaro"


O crime do padre Amaro

Eça de Queiroz, deixa de lado os finais felizes românticos e engaja-se politicamente, num texto (que hoje seria explicito, quase ingênuo) de crítica ao fator político imposto pela igreja e seus representantes, ao mesmo tempo em que com maestria conduz uma história humana, de desejos e sua luta com convenções e proibições sociais.

Para mim, o ponto mais interessante foi este segundo. Se o envolvimento político do autor fica datado, baseado nas aspirações de uma geração que já foram provadas na história (embora alguns teimosos ainda se apeguem ao passado), a segunda fala da natureza humana, tema que está sempre ali na esquina, faz parte da vida de todos. O próprio autor, após pesadas críticas à religião, coloca no final do livro o abade, personagem que redime a classe e mostra a importância de uma vida espiritual - mesmo que mantenha que a religião nem sempre leve a este objetivo.

Mais um belo exemplar de nossa literatura: escrito com habilidade, com um ritmo bastante adequado, descrições só quando necessárias (e nesses momentos são viscerais, deliciosas).

Frases selecionadas:
“A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada enfezada e sardenta, alumiava com um candeeiro de petróleo; e a figura da S. Joaneira destacava plenamente na luz da parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, de aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pele engelhada; os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos, um colo copioso e roupas asseadas.”

“O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o teto , através das orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se.”

“Na sua cela, havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com um olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca...Julgava então ver os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao domingo.”

“Amaro ouvia-a falar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua voz naquele silêncio dos campos parecia-lhe mais rica, mais doce; o grane ar dava-lhe uma cor mais picante às faces; o seu olhar rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que ele entreviu, perturbou-o como um começo da sua nudez.”
“ – É natural, coitado – disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres tu? Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a importância dum Deus. É evidente que há-de utilizar essa importância para satisfazer essas paixões; e que há-de cobrir essa satisfação natural com as aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.”

“Trinta em oito vezes de seguida recomeçara o rosário, e sempre o saiote escarlate se interpunha entre ela e  Nossa Senhora!...Então, desistira, de exausta, de esfalfada. E imediatamente sentira dores vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe alfinetes nas pernas...
O abade pulou:
 - Oh minha senhora!...
 - Ai, não é tudo, senhor abade!
Havia outro pecado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?”

“ – Aí tem o abade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo: resistência às mais justas solicitações da natureza, e resistência aos mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é criar um monstro que há-de passar a sua desgraçada existência numa batalha desesperada contra os dois fatos irresistíveis do Universo – a força da Matéria e a força da Razão!
 - Que está o senhor a dizer? Exclamou assombrado o abade.
 - Estou a dizer a verdade. Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a idéia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação e de exame; portanto de toda a ciência real e humana...”

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