A Elegância do Ouriço - Muriel Barbery
Comecei-o em doses pequenas – poucas páginas por vez – pois estava
terminando outro livro. Pareceu como tarde de degustação de cachaça, que a cada
dosezinha vai nos afeiçoando, descendo mais fácil, sensibilizando, abrindo
novas visões e sabores, fluindo.
Inicialmente, você tem a impressão de que é sobre a
arrogância intelectual, ou sobre a futilidade da vida dos ricos e acadêmicos.
As personagens, paradoxalmente, colocam-se arrogantemente num patamar acima
desses que criticam, e são amargos, como os que despertaram do cotidiano e se
perceberam em meio à vida fútil que a maioria vive.
Consegue então fazer crítica de si próprio: se por um lado
valoriza o constante aculturar-se, por outro relativiza sua importância, ao
lembrar que o bicho-homem está sempre (no fundo) atrás apenas de sexo e status
(para conseguir mais sexo). Reconhece que não há inteligência na escolha por
pensamentos infelizes, e esta reveladora conclusão dá ao livro uma dose de
humildade que o abrilhanta ainda mais.
Constrói as personagens, nos afeiçoa a suas ideias sobre o
sentido da vida, promove deliciosos encontros, e novas conclusões sobre este
sentido. Faz-nos sentir como é especial encontrar e empatizar com seres humanos
com gostos parecidos, que confirmam nossa visão do mundo, ou a questionam num
nível que nos desafia e interessa. Refleti, ao escrever este parágrafo, que é
por isto que escrevo minhas resenhas – para encontrar por ai pessoas que
enxergam parecido, ou que se deixem instigar pelo que penso, mesmo que anonimamente.
É delicioso como a autora escreve frases profundas, bem
elaboradas. Como se tivesse sido escrito por minha irmã, é de uma sagacidade!
Cáustico! Sugere livro bem trabalhado, com verdadeiros trechos de “arte”. Vale
muito a leitura. Um novo clássico. Diversão garantida que entrou para a lista
dos meus preferidos.
Frases selecionadas:
“...que nada é mais
duro e injusto do que a realidade humana: os homens vivem num mundo emq eu são
as palavras, e não os atos, que têm poder, em que a competência última é o
domínio da linguagem.”
“Quando as linhas se tornam seus próprios demiurgos, quando
assisto, qual um milagroso ato inconsciente, ao nascimento no papel de frases
que escapam à minha vontade e que,
inscrevendo-se na folha apesar de mim, ensinam-me o que eu não sabia nem
acreditava saber, gozo desse parto sem dor, dessa evidência não concertada, que
consiste em seguir sem esforço nem certeza, com a felicidade dos espantos
sinceros, uma pluma que me guia e me transporta.”
“(...) toda essa vida em que nos arrastamos, feita de gritos
e lágrimas, risos, lutas, rupturas, esperanças desfeitas e chances inesperadas:
tudo desaparece de repente quando os coristas começam a cantar. O curso da vida
se afoga no canto, há uma impressão de fraternidade, de solidariedade profunda,
de amor mesmo, e isso dilui a feiura do cotidiano numa comunhão perfeita.”