domingo, 26 de outubro de 2014

Mario Prata – Blefes, Chichês e Sedução num bom livro

Com uma coleção completa de Sherlock Holmes dando sopa na minha casa, criei gosto pelas histórias de detetive. Li e reli detetives ao longo da vida, tentando ainda experimentar um pouco de Agatha Christie e Georges Simenon (gostei mais dos livros dele do que dos dela).  Estava estabelecido meu apreço por esse gênero literário.

Mas não foi isso que colocou “Sete de Paus” – de Mario Prata em minhas mãos. Escolhi este livro da prateleira pela lembrança querida de textos do autor publicados em “O Estado de São Paulo”. Publicação sempre divertida e inteligente, sem ranço de formalismos.

O mestre criado por Conan Doyle provavelmente não será nunca suplantado nas histórias de mistério. Prata não queria mesmo rivalizar com outros autores. Ao contrário, faz constantes homenagens, o que faz com que ele próprio se acuse de plágio de várias frases de outros autores. Também faz citações muito bacanas de uma coleção de leituras de policiais do mundo todo.

“A pistola dormia, com aquele seu jeito de lagartixa fria” – Pepe Carvalho, de Manuel Vasquez Montalbán

Uma zona cinzenta entre o mundo dos honestos e o mundo do crime: o próprio personagem principal é aficionado pelo gênero, e se arrisca a sugerir leituras para seu vizinho escritor.  Aparentemente, Mario Prata gostou tanto de sua cria que a reviveu em mais um ou dois livros. Tem alguns clichês de policial velhaco, experiente, sensitivo, mas ao mesmo tempo afeito à bebida e às prostitutas.

Sabe, o trabalho policial é, em sua maior parte, rotineiro e chato, mas muito de vez em quando surgem momentos bastante emocionantes, um encantamento quase infantil de brincar com as alternativas. E eu adoro isso.
 - É mais ou menos como escrever. O momento da ideia. Quando você não está esperando nada e ela vem, plena, total, te desafiando, te chamando para correr atrás dela. De certa maneira o meu trabalho também é investigativo.”

Outra zona cinzenta entre o policial e o escracho: enquanto relata o crime e seus detalhes, usa notas de rodapé e situações inusitadas para expor ideias que variam entre o divertido e o ridículo, mas que agradam no conjunto da obra.

“...Na cueca havia mesmo uma marca marrom tipo freada de bicicleta. E isso havia acontecido porque ele fez cocô fora de casa, no boteco das ostras onde havia ido com o Darwin e, evidentemente, não havia bidê como em sua casa. Desviou um pouco o rosto e deixou que o jato de água batesse ali.(...). Colocava do avesso e jato nela. Mas agora ele percebeu que não estava do avesso e já iria avessar quando viu que o jato havia limpado tudo. E chegou a uma conclusão que só um cinquentão num domingo sem pressa pode atingir. Se tu não virar do avesso a cueca, o serviço da água batendo ali é muito mais eficaz, pois penetrando nas entranhas do algodão, empurra para o ralo a coisa que estava do lado de lá, ao contrário de como vinha fazendo a anos com a cueca invertida.”

“De repente, gordo viu um objeto fazer um risco intenso e luminoso. Era a luz quebrando-se na lâmina viva. Na mão da (não cito o nome para evitar SPOILER), a navalha tornou-se ainda mais leve, macia, diáfana.” (Inspirado em texto de Nelson Rodrigues)

“Acredite quem quiser, o urologista do spa se chamava Bráulio (N.Rodapé: Doutor Bráulio De Brito, mais de 70 anos; portanto, há uns cinquenta anos enfiando o dedo no reto dos outros. Fazia aquilo com uma tranquilidade que chegava a irritar. Assoviando La vie en Rose.”

Por fim, me arrisco numa ideia. Acho que Mario Prata tem uma inteligência e volume de leituras enorme, bem como uma invejável capacidade de síntese. Um cara cuja biografia sugere um sujeito atormentado por sua capacidade de “ler” o mundo. Por que então ele se dedica a brincar com seu talento destacado? Talvez tenha feito isto em outro livro, desconfio que não. Acho que é porque prefere não se levar a sério. Tem medo, ou não está à fim de se expor.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Palavras Lapidadas - João Cabral de Melo Neto

Já disse em outras oportunidades que a poesia não é meu estilo literário preferido. No entanto, me interessei por “Morte e vida Severina”, desde a leitura de “A Estória do Severino e A História da Severina” (Ciampa, A.C.) durante a faculdade de Psicologia. Além da interessante tese sobre a construção da identidade de dois personagens (um ficcional e outro real) em seu viver e possibilidades, fiquei impactado pelo uso de João Cabral fazia da palavra Severina, como adjetivo.

“E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
Morremos de morte igual,
Mesma morte Severina
Que é a morte que se morre
De velhice antes dos trinta,
De emboscada antes dos vinte,
De fome um pouco por dia (...)”

Quando tive a oportunidade de ler o poema inteiro, não hesitei. A recompensa foi incrível. Havia outros de igual qualidade, fazendo par com “Morte e vida Severina”, em especial “Auto do Frade”, e  “O Rio”, com seu tocante início, que compara o curso da vida do retirante ao de um rio. Nasce na serra, e corre para o mar:

“(...)Eu não sei o que os rios
Têm de homem do mar;
Sei que se sente o mesmo
E exigente chamar.
Eu já nasci descendo
A serra que se diz do Jacarará
Entre caraibeiras
De que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
Não consigo me lembrar
Dessas primeiras léguas
De meu caminhar).”

Uma coletânea de poemas ótimos. Páginas e páginas de frases colocadas cuidadosamente, para serem relidas, saboreadas, ecoadas. A alma do brasileiro traduzida em uma bonita essência, captada pela mente aguda do poeta. Qualquer tentativa de seleção é injusta:

“(...)É de bom tamanho
Nem largo nem fundo,
É a parte que te cabe
Deste latifúndio.”

“Vou dizer as todas as coisas
Que desde já posso ver
Na vida desse menino (.,,)
Cedo aprenderá a caçar:
Primeiro, com as galinhas,
Que é catando pelo chão
Tudo oq eu cheira a comida;
Depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.”

“A forca não vive em monólogos;
Dialética, prefere o diálogo.
Se um dos dois personagens falta
Não pode fazer seu trabalho.
O peso do morto é o motor,
Porém o carrasco é o operário.”

Tal qualidade preciosa me deixou triste após concluir a leitura. Mario Sérgio Cortella falava da “miojização do mundo”, da “despamonhalização da vida” (é... procure no google). Fiquei pensando em nossa mediocridade, de arte-pela-grana, de pouco tempo para digerir qualquer coisa, fast-food cultural.  O que nos livra de tropeçar nas tentativas de simplificar nossa língua, ao invés de ensiná-la corretamente? Como fugir dos “com migo”, “concerteza" e “menas”? O caminho das letras é delicioso, mas pouco conhecido de nosso povo cheio de maniqueísmos e ideias rasas.

Quem paga para um escritor lapidar as emoções em palavras, até que se chegue ao nível de nossos mestres? Acho que não há mais condições para que alguém escreva algo desta qualidade, que possa dedicar uma vida ao estudo e ao entalhe das letras. Há pouco estímulo à excelência estética entre a busca do pão e uma consulta à tela do celular. Não é de entristecer?


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A História do Brasil numa história (relativamente) curta

“Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”
– George Santayana (1863-1952)

Apesar de ter estudado em uma boa escola, não importava quão interessante uma matéria podia  me parecer. Eu estava ocupado demais construindo minha personalidade, tentando me sociabilizar e ainda tirar boas notas – este último um desvio de função que realmente atrapalha o aprender.

Pois foi agora, perto dos 40 anos de idade, que decidi retomar meu interesse pela história. Venho estudando história da arte no Khan Academy (www.khanacademy.org), mas em especial o momento era propício para a história do Brasil. Acredito veementemente que entender a história de nossa política e a raiz de nossas dificuldades atuais pode nos guiar pelo labirinto de ódio e de pessoas com “certeza absoluta” sobre suas opções. O ódio nunca foi um bom conselheiro.

Escolhi o livro de Eduardo Bueno por ter uma boa impressão de suas entrevistas na TV. Ele parecia dar um refresco ao estudo da história do Brasil, interpretá-la com um olhar mais distante, diferente daqueles que a codificaram e ideologizaram durante o período militar. É certo que toda a opinião tem ideologias por trás, mas eu queria mais fatos, para que pudesse eu mesmo checar as interpretações que deles derivaram.

“BRASIL, uma história – Cinco séculos de um país em construção” é ótimo! Leitura leve, mas com bom nível de detalhe e encadeamento de ideias. Cumpre bem a proposta. Não tem cara de livro didático, e te faz prolongar as sessões de leitura.

Passando pelos nomes importantes de nossa história, que vemos nomeando ruas e avenidas, tive maior conhecimento sobre o descobrimento, a relação entre os países europeus que por aqui deitaram seus interesses, nossa independência, a república, a escravidão, os ciclos econômicos, Getúlio Vargas, período militar, Diretas já, enfim, aqueles temas que não nos são estranhos, mas que fazem mais sentido se apresentados em sequência curta, mesmo que com menos detalhes. O autor fala de Collor, FHC, Lula e mesmo o início do governo Dilma, com um olhar suficientemente distante. Não endeusa nenhum deles, fala de acertos e erros, e de nossa relativa dificuldade em superar problemas pela fraqueza de nossas instituições.

Faz também um bom retrospecto de nossa cultura. Esta parte é particularmente interessante para quem gosta de literatura e música. Teve apenas um pequeno deslize, ao apresentar o Chacrinha como “mais brilhante, mais tropicalista, mais antropofágico, mais macunaímico e mais brasileiro” dos apresentadores. Teve sua importância, é óbvio, mas é preciso umas doses na cabeça para usar o adjetivo “macunaímico”.

Algumas Frases:

“... Thomas Ewbank, também britânico, dizia que, no Brasil, “um jovem preferiria morrer de fome a abraçar uma profissão manual”. Segundo ele, a escravidão tornara “o trabalho desonroso – resultado superlativamente mau, pois inverte a ordem natural e destrói a harmonia da civilização”.

“D. Pedro II parece ter percebido a verdade contida na frase do senador Holanda Cavalcanti: “Nada se assemelha mais a um saquarema do que um luzia no poder”. “Luzias” eram os liberais, e “saquaremas” os conservadores: embora em tese fossem adversários irreconciliáveis, no fundo eram farinha do mesmo saco.”

“Dutra era uma figura caricata, sobra a qual surgiram muitas piadas. Uma delas contava que, ao ser cumprimentado por Truman, que dissera “ How do you do, Dutra”, o marechal de imediato respondeu: “How Tru you Tru, Truman”