segunda-feira, 29 de junho de 2015

Quincas Borba

“Ao vencedor, as Batatas!” 

Para entender a frase acima, célebre característica desta obra de Machado de Assis, é preciso ler o livro. Não vou dar colher de chá neste aspecto. Esta releitura foi parte do plano para deixar resenhadas as leituras mais importantes, e não esquecê-las mais.


Ao sempre delicioso estilo de Machado de Assis, que faz imagens divertidas para traduzir os sentimentos e ideias de seus personagens, o livro relata a história de Rubião, professor simples em Barbacena, que cuida do amigo Quincas Borba (mesmo personagem de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”) em seus dias finais, e herda toda sua fortuna. Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, sua simplicidade o leva a ser explorado pelos novos “amigos”, levando-lhe pouco a pouco as esperanças de um futuro tranquilo e por fim sua sanidade mental. 

Durante todo o livro, o modo de ser simples de Rubião, e o cuidado temeroso que tem com o simpático cão (que também se chama Quincas Borba e cuja guarda era uma das condições do testamento do Homônimo) nos faz simpatizar com ele – desejar sua felicidade, mesmo se reprovarmos seus adultérios e pequenas ambições manifestas.


No entanto, é com a loucura do personagem principal que Machado de Assis, ainda irônico e fazendo comédias, joga por terra esta esperança. Não me entendam mal, o livro é muito bom, mas deixa na gente aquela sensação do final que não desejávamos. 

Ao final, pode-se dizer (sem estragar a leitura de ninguém) que me senti sem vencedor, nem batatas. E para me consolar, apenas a verdade contundente na pena de Machado de Assis:
“Eia! Chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”

terça-feira, 23 de junho de 2015

O Retrato de Dorian Gray

Em minhas metas de leitura de 2012, precisava acrescentar alguns clássicos a meu currículo. Foi assim que peguei “O Retrato de Dorian Gray” da prateleira – obra de Oscar Wilde, e agora aproveito para compartilhar minhas impressões.

Autor conhecido pelo homossexualismo numa época em que isso era um enorme tabu (era um tabu?) e pela vida de “dândi” que levou em Londres, Wilde deixa muito de sua própria vivência e entendimento do ser humano neste livro.

Narciso - Caravaggio
A maioria de suas obras não foram romances, mas poesias e peças para teatro, pelo que soube. Ainda assim, faz jus ao título de “clássico da literatura”, pois é denso e bem escrito. O primeiro contato com o livro deixa uma sensação de ritmo lento.  E então, com um fato surpreendente (que não cito aqui para não me tornar “spoiler”), o autor faz o ritmo lento tornar-se mais frenético, e o livro segue interessante até o final. Descompromissados como quem olha a paisagem urbana pela janela de um trem, podemos observar no decorrer da história a vida na nata de uma sociedade rica, sem preocupações por sobrevivência, já anestesiada de suas culpas.
“Costuma-se dizer que a Beleza é a maravilha das maravilhas. Só o medíocre não julga pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível... Sim, Sr. Gray, os deuses foram generosos para com o senhor. Mas o que os deuses dão, tomam logo em seguida. O senhor não tem senão uns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. Quando a sua juventude se desvanecer, a sua beleza ir-se-á com ela, e, então, descobrirá que nada ficou dos seus triunfos, ou terá de se conformar com esses êxitos insignificantes, que a lembrança do passado torna ainda mais amargos que derrotas.”
O homoerotismo subjacente aparece nas relações de admiração e controle entre os personagens masculinos iniciais. A misoginia aparece no retrato das mulheres durante o livro – mas aparecem como crítica, não determinismo ou preconceito. São construídos cenários retratando a sociedade fútil da época, mas que, tendo ainda em seus membros a educação sólida de infância, sobra em criatividade para justificar sua inutilidade. Num estilo de vida em que tudo está garantido, os prazeres simples perdem em interesse, e é preciso drogas cada vez mais pesadas. É assim que as personagens trocam frases sarcásticas, polêmicas e desesperançosas.
“Meu caro amigo, nenhuma mulher é gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Não têm nunca nada a dizer, mas dizem-no de um modo encantador. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre a inteligência, exatamente como os homens representam o triunfo da inteligência sobre os costumes.”
O sarcasmo é uma cortina de fumaça para esconder problemas de autoestima. Nas frases inteligentes e na influência sutil de um personagem sobre o outro, aparece a genialidade do autor, mas também sua prisão e fragilidade. De forma semelhante, o caçador tem a vida da caça na ponta de seus dedos, mas é escravo de mantê-los no gatilho, por precisar dela o suprimento de adrenalina para justificar sua existência.

"Verdade é que todo aquele que observava a vida, em seu estanho crisol de dor e prazer, não podia usar máscara de vidro no rosto, nem impedir que os vapores sulfurosos lhe perturbassem o cérebro e turvassem a imaginação com monstruosas fantasias e sonhos informes. Havia venenos tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, fazia-se mister experimentar seus efeitos em si mesmo. E enfermidades tão estranhas que era preciso tê-las sofrido, para compreender-lhes a natureza.”

domingo, 21 de junho de 2015

Todos os Elogios a Aluísio Azevedo

Lido na época dos "livros obrigatórios" do ensino médio, O CORTIÇO – de Aluísio Azevedo - não tinha me chamado a atenção. Ok, sejamos justos com a obra. Talvez eu tenha lido só algum resumo para passar na prova, pois hoje penso ser impossível passar por ele sem gostar. Desta vez foi uma leitura completamente nova, que diferença! Foi um verdadeiro prazer passar pelas páginas de "o cortiço", que passa para mim a ocupar honrosamente a posição de obra favorita da literatura nacional.


A Sensualidade das Lavadeiras de Carybé
Por toda a obra, é muito forte a capacidade de descrição do ambiente, onde os personagens se inserem de maneira natural. E o ritmo que consegue manter? Praticamente você não é capaz de se desgrudar do livro. Sempre acontece alguma coisa ou se introduz alguma figura interessante. São essas características, a meu ver, que fazem que O CORTIÇO seja tão indicado.

"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono, ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite..."

Não é visceral? Você obviamente não quer a vida de exploração e privação desses personagens, mas sente como eles a intensidade de sua experiência e simplicidade. O gosto do café, o cheiro da roupa limpa, a delícia de ver a vida como criança, sem muito futuro, sem muita complexidade.

Para mim, uma das mais realistas e belas descrições da condição masculina:
"Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restilo que havia no copo.

Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool produziu-lhe logo de pronto o feito voluptuoso e agradável da embriaguez nos que não são bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento que antecede à satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se afinal de nós, numa avidez gulosa de beijos."

"Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço, sobressaltava-se agora com os desalentados soluções do ferreiro.

Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em seu pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como que naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea.

(...)

Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto , que os infelizes, carregados de desonra e de ludibrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...
E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força e do seu próprio valor.
Sorriu.
E no seu sorriso já havia garras."
(...)
E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar dela sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.”
Uma única reserva – não com o conteúdo, mas com a edição antiga da Editora Ática, que é de baixa qualidade. Acho que o foco dessas obras indicadas para vestibular é que sejam baratas - então desmontou todinha na minha mão. Tem ainda um espaço entre linhas bastante pequeno e desconfortável.



Leitura fundamental! Devo ser louco de não ter lido mais nada deste autor, e pretendo remediar isto em breve! Qual deve ser o próximo?

sábado, 20 de junho de 2015

O Crime do Padre Amaro

Discutir a influência política que as religiões são capazes de exercer. Esta é a principal ideia de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz. O autor deixa de lado os finais felizes românticos e engaja-se politicamente, num texto (que hoje seria explicito, quase ingênuo) de crítica ao fator político imposto pela igreja e seus representantes, ao mesmo tempo em que com maestria conduz uma história humana, de desejos e luta com convenções e proibições sociais.

Mexer com Símbolos Religiosos dá um IBOPE danado...
Há duas facetas interessantes no texto. Na primeira, o envolvimento político da igreja, presente até hoje, quando vemos a força de congressos eleitos por rebanhos fieis, e a baixa permeabilidade da sociedade a novas formas de família, questões ligadas à sexualidade, aborto, suicídio, entre outros. Num retrato patético da conexão entre política e religião, basta ver o rosto constrangido de políticos declaradamente ateus, visitando cerimônias religiosas em épocas eleitorais.

Se o engajamento político da obra ficou para mim um tanto datado - baseado nas aspirações de gerações que já passaram pelo teste da história (embora alguns teimosos contradigam fatos e ainda se apeguem ao passado) -  o segundo aspecto fala da natureza humana, tema que está sempre ali:  nos intermináveis diálogos que travamos com nós mesmos. Mostra que nem mesmo os padres e beatas mais dedicados estão livres de sentirem o sangue nas veias, e qual inexpugnável deveria ser seu arcabouço teológico para lidar com a avalanche de pensamentos geradas por um decote generoso ou um discurso poderoso.

Achou o modelito sensual?
Mais um belo exemplar de nossa literatura reconhecido para além dos limites de nosso idioma: escrito com habilidade, com um ritmo bastante adequado, descrições só quando necessárias (e nesses momentos são viscerais, deliciosas). Uma pena que quando adolescente, não gostei do livro apenas porque sua leitura foi imposta pela escola.

Se você tem sensibilidade à crítica religiosa, não se preocupe. Nenhum dos argumentos é leviano. E o próprio autor, após pesadas críticas aos sacerdotes, coloca ao final do livro a personagem do abade, que redime a classe religiosa e contemporiza ao mostrar a importância de uma vida espiritual - mesmo que mantenha a posição de que a religião nem sempre leve a este objetivo.

Frases selecionadas:

“Na sua cela, havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com um olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca...Julgava então ver os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao domingo.”

“- Estou a dizer a verdade. Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a idéia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação e de exame; portanto de toda a ciência real e humana...”

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Games para Resolver Nossos Problemas

"Sai desse videogame! Você não vai ser nada na vida se ficar só jogando!". 

Já ouviu sua mãe berrar essa frase? Pode ser que sim ou não, mas é provável que já desejou no seu íntimo que ir à escola ou trabalhar fossem tão divertidos quanto desvendar as fases de seu game favorito e ganhar pontos e "badges".

Campeonatos de Videogames movimentam dinheiro suficiente para times profissionais
Como qualquer mamífero, somos programados geneticamente para aprender brincando. Grandes felinos brincam de caçar, aguçando suas capacidades. Da mesma forma, nos jardins-de-infância as crianças interagem, aprendendo linguagem e regras sociais, negociando para defender seus pontos de vista. 

É baseado nessa premissa que escolas bem sucedidas fazem cada vez mais o ensino ter relação com a prática e com a vida. Também aproveitamos nossa gana por pontos em programas de relacionamentos de empresas. 

Nos aplicativos de nosso celular, as regras nos conferem status diferenciados conforme contribuímos para uma tarefa, ou fornecemos informações do trânsito, ou visitamos lugares - fenômeno chamado crowdsourcing. Nos sites de leitura, atire a primeira pedra quem não olhou com orgulho para seu "paginômetro". As redes sociais são divididas entre os viciados em jogos online e os indivíduos de saco cheio de receber convites.


Esbarrei por acaso no livro "Gamification: Como criar experiências de Aprendizagem engajadoras / Um guia completo do conceito à prática" de Flora Alves. Estava no aeroporto para enfrentar um voo longo e me vi sem "munição" de leitura - sendo obrigado a recorrer a uma livraria. Além do interesse natural pelo tema, escolhi este livro porque trabalho no desenvolvimento humano nas empresas e dou aulas.

Ao ler o livro, pareceu um pouco como se alguém tivesse pesquisado o tema no google, analisando e pinçando os resultados mais relevantes. É uma ótima introdução a um assunto que eu imagino que fará cada vez mais parte de nossas vidas. A autora não promete esgotar o tema, mas faz uma apresentação bem didática do mesmo. 

É eficaz ao mostrar as ideias gerais de como incorporar estratégias de games nas resolução dos problemas do dia a dia. Dá pistas de como saber mais a respeito, seja compartilhando impressões sobre diferentes estudos na área, seja divulgando links para cursos e dicas diversas. Tudo entregue como num game, com uma barra de progresso a cada capítulo, e tópicos indicando o que esperar de cada etapa. Super amigável.


Somos uma geração que cresceu jogando, e muitos adultos continuam a investir em jogos, que estão cada vez mais elaborados. Muita gente que está participando de games online. Campeonatos já distribuem grana suficiente para justificar times profissionais. Em consequência, é normal que cada vez mais pessoas se sensibilizem sobre Gamification (Clique aqui para conhecer o curso gratuito da Coursera).

Parece que as mães vão perder essa batalha!




terça-feira, 9 de junho de 2015

O Mal que nos Habita - O Médico e o Monstro

Acabo de chegar ao fim de “O estranho caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde” – mais conhecido como o “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson (Selo Penguin – Companhia das Letras). Sucesso desde quando foi editado pela primeira vez em 1886, o livro é pequeno, de ritmo eletrizante, bem escrito, enfim: é de ler num fôlego.

E se para passar por seu número pequeno de páginas não é requerido esforço, tive alguma dúvida quanto a escolher inicia-lo. O que poderia ter de interessante num título tão conhecido, com tantas adaptações para teatro, cinema, televisão? Nesta resenha não corri o risco de ser “spoiler”. A história do médico bom que toma uma poção e torna-se mau é conhecida de todos! Faz quase parte do imaginário, desde o desenho do scooby-doo, até outras obras conhecidas, em que esta formula do “duplo” personagem se repete: “Silêncio dos Inocentes”,"Hulk", “Psicose”, etc.


Mas é aí que o clássico mostra a genialidade que o fez sobreviver mais de um século. Da safra de grandes escritores da literatura britânica, o autor escolhe um caminho interessante para entregar-nos a história. Não é um narrador onisciente, ou o próprio Dr. Jekyll (este escreve-nos apenas no último capítulo) quem conta “o estranho caso”. Ele é retratado sempre por personagens coadjuvantes, em incidentes aparentemente desconexos. O artifício aumenta as lacunas nas histórias, contadas por diferentes pontos de vista, o que aumenta o suspense. 

Você sabe o que está acontecendo, e ao mesmo tempo só consegue conectar os capítulos página à página. Não dá pra saber o que vem à frente, numa literatura que imita a atmosfera da Londres daquela época – enevoada e misteriosa – talvez um dos primeiros exemplos de metrópole que permite tanto uma sociedade rica e complexa, quanto anônima e entregue aos seus vícios.


O retrato do honrado Dr. Jekyll, e do malévolo Dr. Hyde vai se desenhando na tela mental, como num “download” lento. Aos poucos, vamos percebendo que não se trata de mera literatura fantástica ou gótica, de terror... não é obra para rotular. A ideia de que somos seres complexos e de que não somos “donos” das emoções que sentimos dói em nosso orgulho de autocontrole, mas nos é familiar e irrefutável. 

No íntimo, todos sentimos a tensão entre o velho primata que nos deu origem, e o indivíduo racional/religioso/moral que tentamos manter vivo e construir na sociedade moderna. É um equilíbrio tênue, e tropeços se acumulam por toda parte: dos casos extraconjugais às páginas policiais, nosso poder de destruir é tão forte quanto nossa arte e espiritualidade. 

Sentados pelos bares a tomar nossas “poções”, ou no intervalo entre a vigília e o sono, nossos sonhos e desejos afloram clamando por seu espaço. Se atendidos completamente, reivindicam avidamente por prioridade, levando com seu imediatismo animal os alicerces de nossas construções culturais mais elaboradas. Se fortemente inibidos, somatizam-se em dores e loucuras, provando que são parte inerente de nós, tanto quanto é inerente à humanidade o uso de substâncias para se perder de si mesmo. 

O "estranho caso" é uma leitura deliciosa, e nem é assim tão estranho ou infrequente. Aprecie sem moderação.

Encontre/Adicione/Compre:
Catálogo Companhia das Letras - Penguin
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Orelha de Livro

Posts relacionados:
- Caixa do Correio - Clássico da Companhia das Letras

sábado, 21 de fevereiro de 2015

De Mosaicos a Caleidoscopios

Somos todos diferentes. Diferentes traços genéticos nos definem feições, pesos e alturas diversos – um mosaico humano. Nossos talentos são diversos: uns são sensíveis às artes, outros hábeis com as mãos – ou raciocinam de maneira abstrata, desafiando os limites do universo. Somos gregários ou reservados, espirituais ou pragmáticos, ou qualquer posição nesses espectros entre o claro e o escuro.
Atirados no nascimento a um mundo que gira a 1660km/h – numa cultura que começou muito antes de chegarmos, somos esponjas a tentar entender nosso entorno. Desenvolvemos linguagem, habilidades motoras, preferências – e vamos assim plantando os alicerces para nos sentirmos seguros para nossas decisões e ações – um mosaico ideológico.

É desses alicerces que derivamos nossa visão de mundo, que construímos nossas certezas. Não há interpretação que façamos sem o filtro de nossas internalizadas ideologias. Essas certezas construídas são tão diversas quanto nossos modos de ser, mas nos aglutinamos em torno daqueles que se parecem conosco, e passamos a nos sentir parte de um todo.

Os coletivos pensam pelos indivíduos – o que também parece ser típico de nossa espécie – e formam-se estruturas de poder. Capazes de proteger seus “iguais”, essas estruturas se impõe a outras, arrebanham fiéis, elegem adversários. Surgem as agremiações, as religiões, os partidos políticos. Haverá nas ideologias vários alertas sobre as tentativas dos outros grupos em abalar “a única Verdade”.A esta altura, o indivíduo diluído que ousar questionar seu coletivo sofrerá sanções.

A luta de uma sociedade por suas verdades leva a extremos, como nos mostra a jornalista Barbara Demick, no livro “NADA A INVEJAR, Vidas Comuns na Coreia do Norte”, que coletou relatos chocantes de pessoas que fugiram daquele país. As ideias socialistas se associaram ao confucionismo e a outros elementos culturais da península, resultando num regime político socialista e hereditário. O Partido dos Trabalhadores coreano representa os organizadores do regime, que coordena todos os meios de produção, estabelece leis e escolhe como fazê-las cumprir.

Entre a china e a Coreia do Sul, a noite sem eletricidade da Coreia do norte

Com a abertura das economias chinesa e soviética a práticas capitalistas, a Coreia do Norte perde apoios. Sua dedicação a um programa nuclear complementam as justificativas para um embargo, relegando à miséria seus mais de 23 milhões de habitantes. Ajuda humanitária tenta prover comida, mas pessoas com mais influência utilizam seu poder para disputar os escassos recursos. E há sempre gente disposta a defender regimes totalitários dos quais seus habitantes arriscam a vida para fugir.

O exemplo extremo deste país e os trechos de fome e violência do livro mostraram para mim os riscos dessa rigidez, também presente em nossas vidas. Nossos mosaicos limitam nossa visão da realidade.  Somos cheios de certezas, quando deveríamos “ser” mais dúvidas. Nossa recente passado político exemplifica nossa capacidade limitada de questionar tais mosaicos. Todos representamos coletivos que até hoje se enraivecem com os argumentos das outras partes a questionar nossas certezas.


Se pudéssemos alternar diferentes ângulos de visão ou sacudir esses mosaicos ideológicos às exigências da realidade, passaríamos de estruturas fixas a caleidoscópios, com maior diversidade. Nas múltiplas possibilidades, poderíamos buscar as alternativas mais ajustáveis a cada momento, livres de certezas construídas no passado de ideologias extremadas. Para isto, é preciso a coragem de deixar certezas para trás, expor-se a novos grupos e novos arranjos de ideias, enriquecendo nosso senso crítico. Estaríamos assim mais aptos a vencer a fome de alimento, cultura, planejamento e respeito mútuo em que nos colocamos.



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Comentando a Obra de Alguém que Conhecemos

Comentar o livro de um escritor que conhecemos é muito difícil.

Adorei seu Livro!
O que pensará o autor, quando aquele aspecto da obra que ele tanto se esforçou para produzir não for bem recebido? Terá ele vontade de desqualificar o crítico com um sonoro: “BAH! Você não entendeu nada!”? O que sentirá aquele parceiro do blog, que nos presenteou com seu livro para vê-lo divulgado, e agora vê que desestimulamos seus potenciais leitores?

Quando comecei a escrever as resenhas no Dose Literária, sempre soube que as pessoas não querem um resumo da obra – algo que só serviria como “spoiler”. A expectativa do leitor, penso, é por uma opinião! O que tem de legal neste livro? O que poderia ser melhor? Vale a pena tentar obtê-lo e dedicar tempo a ele? É importante falar do polêmico – daquilo que agradou ou desagradou de maneira mais marcante. São esses detalhes que criam interesse, que atraem o leitor. São esses aspectos que estimulam a leitura, que acho que é no fundo o nosso papel mais nobre aqui.

Escrever expõe o autor. Para fazer algo realmente original, é importante ir fundo na alma, e com isso colocar para fora várias de nossas conclusões e ideias de mundo. A essas ideias originais, soma-se a técnica, e o trabalho de revisão. Como dar fluência às ideias, como prender o suspense, como desenhar cenários e personagens e direcionar o olhar da mente do leitor – são todas coisas difíceis de fazer, que fazem o ato de escrever tão instigante.

"Eu quero qualquer coisa que ele ousar me servir!"
Se são nossas ideias, podemos nos levantar por elas, acreditar em seu valor e lutar para defende-las, mas é sempre doloroso vê-las pisoteadas por críticas. É duro quando alguém mostra um furo em nossas roupas. Expostas nas páginas, nossas particulares opiniões sobre o mundo ficam ali, nuas, apresentadas para que as pessoas gostem ou não. E como toda a leitura, haverá aqueles que se identificarão de pronto com o conteúdo, e outros cuja estrutura mental se distanciará de nossas ideias, como polos magnéticos iguais.

Num certo sentido, é muito mais fácil falar de um autor que já morreu, ou que é tão famoso que não vai aparecer por aqui e nos confrontar. Desses seres de mármore nós podemos falar despudoradamente do que gostamos ou não, ou sobre modismos que despontam em tons de cinza ou em séries intermináveis que vendem um monte de exemplares. Nossa opinião não precisa ser unanime. Ela interessa aos leitores, e cabe a eles ressoar em favor ou contra a maneira como essas obras nos tocaram.

No caso de autores mais “mortais”, no entanto, desperta aquele cuidado. Temos, claro, o compromisso com nossos leitores, mas também o de não sermos desestimulantes com os novos talentos. O feedback não representa a verdade, mas apenas como aquela determinada obra nos impactou. Está sujeito a toda sorte de percalços nesta interpretação, como nosso apreço ou rejeição ao estilo, nosso grau de conhecimento sobre o tema abordado, nosso histórico de vida e leituras. O fato de não termos gostado de um livro quer dizer apenas isso – que não gostamos dele – e não que ele seja ruim e não mereça apreciação por outros.

Talvez seja um pudor excessivo, mas o sinto por me colocar nos sapatos de escritor. Também eu tenho minhas crias ao sol, tentando seu espaço. As companheiras do blog, felizmente têm me poupado de uma análise esmiuçada de meu romance “Aprendi a me Amar”, não sei por quanto tempo. Pessoalmente, acho-o leve e singelo – com trechos bonitos, com mensagens válidas. Também enxergo nele minha inexperiência, desde alguns trechos muito simples, até todo o processo para sua publicação. Enfim, é preciso começar de algum lugar, mas se recebermos uma paulada logo ao tirar a cabeça da toca, pode faltar coragem para uma nova tentativa.

Podemos aqui destacar pontos fortes e fracos, mas isto nunca deveria ser visto como um desestimulo aos autores. É certo que escrever é um ato de coragem.  Atos de coragem têm sempre valor.



quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Volta ao Mundo em 80 Dias - Julio Verne

Provavelmente a obra mais conhecida do autor, e sucesso ao redor do mundo, foi meu primeiro livro lido no Kindle. Um belo contraste, ler uma obra de 1873 numa mídia eletrônica.

E esse contraste é o mais saboroso da leitura deste livro. Com a evolução tecnológica dos meios de transportes, pela primeira vez na história da humanidade se tornava possível a um indivíduo provido de recursos dar a volta ao mundo, alternando-se entre navios e trens.

É claro, o mundo daquela época não era tão rico em intercomunicações. O tempo antes da internet e das viagens de avião permitia que cada cultura permanecesse intocada. Viajar era, então, a chance de contato com quase alienígenas. Embora fossem civilizações humanas, as roupas, hábitos e religiões eram profundamente diferentes, e não se conheciam.

O Itinerário
Os protagonistas do livro - o nobre Mr. Phileas Fogg e seu criado Passepartout – numa brincadeira com sua origem francesa, indicando ser capaz de passar por tudo – conseguem superar dificuldades com o idioma, diferenças na gastronomia, passagem por fronteiras, vistos, etc – em sua luta por vencer uma aposta – a volta ao mundo em 80 dias, retornando a Londres.

“Já sei o que é, respondeu Fix. Você olhou a hora de Londres, que está quase duas horas atrasada em relação à de Suez. Tem de acertar seu relógio pela hora local de cada país.
 - Eu! Tocar no meu relógio! Exclamou Passepartout, jamais!
 - Então ele não estará mais de acordo com o sol.
 - Tanto pior para o sol, senhor! Ele é que estará errado!”

Julio Verne, francês, exagera as características inglesas, como a frieza e pontualidade a um nível cômico. Também ressalta a latinidade do francês, com uma postura mais emotiva e humana. Há o deslumbramento diante de cada cultura. Como terá sido para o autor reunir tamanha quantidade de informações sobre diferentes países e religiões? Será que viajou? Conhecia pessoas e obras em diferentes lugares? Pesquisou tudo para escrever seu romance?
O momento em que Fogg aposta sua fortuna no sucesso da viagem
É claro que as vezes as descrições soam estranhas – sugerindo que ele não tinha exatamente ideia do que estava falando – como ao descrever uma manga:

“mangas, de bom tamanho, castanho escuro por fora e de um vermelho muito vivo por dentro, e cujo fruto branco, ao desfazer-se entre os lábios, proporciona aos verdadeiros gourmets um prazer sem igual.”

Por vezes, soa estranho a tradução antiga, como ao descrever o saquê e os quimonos:

“´kirimon´, espécie de roupão cingido por uma faixa de senda formando na cintura, pelo lado de trás, um laço extravagante.”
“Saki, licor tirado do arroz em fermentação...”

Mas o resultado final vale muito a pena. E assim descreve o caminho percorrido, os percalços, as aventuras, num ritmo bastante adolescente, despretensioso de ser um livro culto, mas claramente comprometido com o entretenimento. E que diversão! O livro tem ritmo suave, gostoso, e um final bastante surpreendente. 



E aí, você prefere viajar pelos livros ou de verdade?

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Minha Experiência com o Kindle

No final do ano, ganhei um Kindle Paperwhite de presente.

Ah! Sim! Um lindo presente para qualquer leitor assíduo, já de cara com a perspectiva de "baixar" alguns livros gratuitos, ou comprar outros a preços reduzidos. Agora que conclui a primeira leitura com ele, estou apto a emitir algumas opiniões, quem sabe úteis para os que estão na dúvida.



Primeiro: a ideia é muito boa. Com uma tela que não tem “backlight” (a iluminação por trás da tela, como acontece nas tvs, computadores e tablets), é possível ter uma leitura confortável como a de um livro normal. Entre outras vantagens, sem os custos de gráfica, o livro fica inevitavelmente mais barato. 

Também não tem problema de esgotar a tiragem, e qualquer erro que tenha escapado da revisão pode ser corrigido imediatamente. Os autores ocultos em cada um de nós também ganham com a popularização dos e-readers, como são chamadas essas maravilhas da tecnologia. É que agora, ao invés de tentar uma editora, você simplesmente lança seu livro. Pode ser de graça, pode ser por um valor simbólico, mas dá para submeter sua "criatura" ao mundo, e esperar pelas críticas.

Ele é leve, fácil de levar e segurar, guarda um mundão de livros dentro (e tem cópia na nuvem, portanto vc não perde, e não se preocupa). A bateria dura mais de mês, você pode consultar o dicionário (se tiver wi-fi), pode grifar e pode comentar quanto quiser. Pode baixar para ele seus livros em PDF, que você não tinha saco de ler no computador.

Se quiser, é possível mudar o tamanho das fontes. Se por um lado isso nos livra daquelas edições desumanas, que cansam os olhos, esse recurso acaba com o sentido de ter um número de página. Dependendo da formatação, você passa a ter uma “posição”, ou porcentagem do livro lida. Ele guarda a posição para você. Não existem marcadores (snifff).

Minha esposa sempre se irritou com a luz do abajur acesa. Com o Kindle, dá pra ler confortavelmente no escuro, e a luz projetada é bem mais discreta. Você se torna autônomo. Lê no avião sem aquele foco te destacando na escuridão. Lê tranquilo em lugares com iluminação insuficiente.

Tudo isso é OK! Sou a favor! Mas entendo se sua reação inicial for de “torcer o nariz”. Puxa, gosto tanto de trocar livros com minha família! A gente lê um e gosta, e quer compartilhar pra ter diferentes comentários. Não dá para compartilhar livro eletrônico. Você só pode indicá-lo. Além disso, gosto do cheiro de pó dos livros tradicionais (ou do cheiro de novo), não sou alérgico a eles. Gosto de como ficam na minha prateleira, numa diversidade colorida, me lembrando toda a informação que entrou na minha cabeça e que me tornou uma pessoa melhor (acredito mesmo que o livro nos faz isto). Gosto de marcadores, capas coloridas, dedicatórias. Tudo isso fica meio sem sentido quando visto numa tela que não é colorida (podia ser...).

Como ter o melhor de cada opção? Vá com as duas! Estou lendo no Kindle, e também em livros tradicionais. Dou prioridade a ele quando vou viajar, ou quando estou na fila do médico, ou esperando abrir o portão da escola do meu filho. Mas não abro mão do livro físico, com seu cheiro, seu charme, seu peso. Não dá pra andar entre as prateleiras de uma biblioteca de Kindle, e sentir aquele silêncio que contém toda a paz do mundo.

Já experimentou o silêncio que existe bem no meio de uma biblioteca?
O que vai acontecer? Ainda tenho uma fila de livros físicos para ler. Com o tempo, no entanto, imagino que as novas compras fiquem mais “dentro” do Kindle, ou ao menos a maioria delas. Livro eletrônico é mais barato, não amarela, não molha, não é comido por cupim. Ainda assim, todas as sensações aliadas ao livro físico nunca deixarão de fazer parte do prazer da leitura. Duvido que consigam acabar com nossos amigos de papel. O futuro dirá

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O Que Queremos da Tecnologia?

Quando garoto, fiz uma vez um robô com sucatas e dentro dele escondi um gravador. Para fazer a voz da criatura, bastava torna-la mais constante e monocórdia. As mensagens pré-gravadas exigiam as perguntas certas, e entregavam um conjunto limitado de respostas. Eu apertava o “play” logo após uma pergunta -  e voilá – tinha meu simulacro.

Asimo demonstrando seu apurado senso musical

Uma distância imensa de tecnologia separa meu monte de sucata do Asimo (o nome é uma clara homenagem ao escritor), simpático robô da Honda, capaz de interações diversas com os seres humanos. Ainda assim, ambos compartilham uma mesma limitação: fazem apenas o que está contido em sua programação. Não há criatividade.

O que seria da humanidade se os robôs deixassem os limites de resposta para os quais foram programados? Se fossem realmente inteligentes – até mais que nós – e passassem a assumir nossas tarefas com maior qualidade do que seriamos capazes?

Asimov propôs a mesma pergunta, e publicou uma série de contos em revistas de ficção científicas, reunidos posteriormente sob o título: “Eu, Robô”. Esqueça histórias de humanidade escravizada, como “Exterminador do Futuro”, “Matrix” ou mesmo o filme “Eu, Robô” – baseado nesta mesma obra. No universo de Asimov, as “Três Leis da Robótica” obrigam as criaturas a zelarem por seus criadores.

A mente humana sofre, porque é ela a tentar entender a si mesma: Ouroboros – a serpente que devora a si mesma. O autor queria nos mostrar que, se a inteligência dessas máquinas fossem capazes do julgamento moral, então também elas seriam vítimas de lutas internas, tais como os humanos. Seriam suscetíveis a erros de julgamento, raciocínios tautológicos, indecisões e fanatismos. Todos esses casos que desafiam a inteligência dos personagens Alfred Lanning e a Psicologa-roboticista Susan Calvin, ambos retratados de maneira superficial no filme com Will Smith.


A figura do robô na capa desta edição da Editora Aleph sintetiza o velho e o novo, e impressiona pelo bom gosto. Assim como o autômato que criei na infância, utilizaram lâmpadas ao invés das câmeras ao representar seus olhos. Simbolizamos desta forma, creio, que mais do que a funcionalidade de “enxergar” o mundo e interagir adequadamente, queremos que a tecnologia um dia tenha um brilho no olhar. Queremos que tenha uma alma para interagir conosco, satisfazendo assim a maior necessidade humana – por companhia.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Madrugada Suja - Miguel Sousa Tavares

“Nada é a feijões”

Esta frase de um dos personagens de Miguel Sousa Tavares, em seu ótimo livro “Madrugada Suja”, representa o mote da trama. Tudo tem seu preço. A cada decisão que tomamos, ou deixamos de tomar, nosso caleidoscópio dá uma volta, muda o cenário, fecha janelas e portas para abri-las em novos e surpreendentes lugares.


Na história com excelente ritmo e cheia de acontecimentos, vamos nos afeiçoando às palavras levemente diferentes do idioma usado em Portugal.  Você se pega na leitura com sua “voz mental” falando com sotaque português. Ao menos foi assim comigo. Achava tão mais bacana que ligeiras diferenças permanecessem, ao invés da infeliz revisão ortográfica em que nos jogamos!

Herdamos dos portugueses algumas características boas e outras más. Desconfio que é dos portugueses a receptividade ao estrangeiro, dado ser um país que se atirou ao mar e viajou e colonizou o mundo, miscigenou nele, ao invés dos imigrantes de tantas outras culturas, que formam guetos. Também é deles algo de nossa lascívia, como em vários trechos picantes – denotando claramente um livro escrito por um autor masculino.

“Se digo que não sei bem se ela sabia ou não o que se passava do lado de fora da casa de banho é porque, muitas vezes, recordando e constituindo o que eram essas incríveis sessões de devassa crepuscular, me parece quase impossível que tudo aquilo fosse inocente e desprevenido, da parte dela: a maneira como se estirava toda, arqueando o peito e as pernas, a maneira como rebolava de repente virando o traseiro em direção à janela, como se sentava de lado e depois de frente, expondo a todos os ângulos aquele inacreditável peito, a crueldade lenta com que passava por todo o corpo o sabão azul e branco, em cada curva, em cada reentrância, em cada músculo, esfregando como se fosse noite de núpcias, tudo isso ou era demasiado estudado ou era mesmo um dom. (...) Eu quis morrer assim várias vezes.”

As semelhanças também passam pela emotividade e apego com a família, e infelizmente, à corrupção e uso do governo e das promessas aos pobres como forma de enriquecimento ilícito e toda a sorte de corrupção. Tavares é também comentarista político, e faz várias inserções de suas opiniões sobre a união europeia e a gestão portuguesa, aproveitando o pano de fundo para o livro.

“Todos estavam endividados, mas felizes: o Estado, as autarquias, os cidadãos. Todos viviam em casa própria, mas que de facto, pertencia ao banco que lhes emprestara dinheiro a trinta anos e também emprestara para as férias no Brasil, Cuba, República Dominicana, mais o carro e os brinquedos electrónicos dos filhos”

Mas mais do que a trama política, mostrará para nós uma verdade universalmente piegas, mas verdadeira: o ser humano só quer ser amado. Das histórias de superação de uma das personagens, ao esforço dos que se levantam contra a mentira e a corrupção – passando por segredos íntimos, tudo isso está apenas emoldurando aquilo que nos faz gostar do livro. É a busca por vida em cada um dos personagens, uns indo longe de casa, outros nela ficando. A rotina em uma aldeia campestre, a vida de gente da cidade, toda entrelaçada na eterna busca humana por felicidade. A angústia da finitude, representada no saudosismo das lembranças e locais de infância - que passam a não ser visitados -  tão doloroso é o sentimento de perda que temos ao olhar as rugas no espelho.

O pano da história, das ideologias a que se aferram tantas certezas, talvez represente os limites do rio - seu curso por acidentes diversos. Mas jogado neles estamos todos, seres humanos, trombando uns nos outros, nos prejudicando e nos amando, e tentando no processo manter a cabeça para fora d´água. Enganados por alguma sensação de controle, vamos ao fluxo de uma enorme corrente, ora boiando, ora nos agarrando a algum galho ou pessoa, mas com limitada capacidade para guiar nossos destinos.

“Foi avo e mãe, mulher duas vezes, deitou-me quando adormecia de noite em frente ao lume, acordou-me quando dormia, de manhã, sem outro aconchego. Sobrevivi, literalmente, graças a ela. Mais tarde – e só mais tarde, como era hábito, passou-me também aos cuidados e atenções do meu avô, mas quando eu já tinha espigado, já mostrara que tinha vindo para viver, e já podia ir para o campo, para os animais ou para a barbearia, para o mundo dos homens, onde não havia colo nem festas na cabeça, mas silêncios e gestos mudos, uma dureza, uma secura de sentimentos, que era a maneira de os homens gostarem uns dos outros sem o dizerem.”

Aldeia Portuguesa
“Ficou a olhar, distraído, para um jogo de futebol entre miúdos, que se jogava na praia: na já quase escuridão que cobria a praia, o guarda-redes foi batido com um remate de longe e os miúdos de outra equipe saudaram o golo gritando e abraçando-se. “ A vida é feita de pequenas vitórias”, pensou, “são elas que antecipam e compensam as grandes derrotas.”

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Warren Buffet - Dicas do Maior investidor do Mundo

Como vive o maior investidor do mundo, segundo na lista de bilionários (atrás apenas de Bill Gates)?

Warren Buffet continua em sua pequena cidade, mora numa casa normal, usa um carro normal (talvez velho para padrões americanos). Tem hábitos frugais, e seu único luxo é um jato da empresa, que utiliza para cumprir seus compromissos.

“Acredito que viver aqui é melhor. Quando trabalhava em Nova York, sentia-me o tempo todo sob o impacto de mais estímulos e, como temos a quantidade normal de adrenalina, simplesmente reagimos a tais estímulos. Depois de algum tempo, isso pode levar à loucura. Aqui, pensar é mais fácil.”

Aparentemente trabalha porque isso o instiga intelectualmente. Quer se destacar na compreensão do mercado financeiro e para onde ele vai:

Até que ponto Buffet leva em conta às recomendações dos corretores? “Nunca pergunte ao barbeiro se você precisa cortar o cabelo”.

“Como diz Wayne Gretzky, vá para onde a bola está indo, não para onde ela está”

O livro de Janet Lowe é um tanto oportunista, é verdade. Embarca no sucesso profissional e pessoal dessa figura pública. Utiliza várias entrevistas e opiniões de Buffet, explicitadas em inúmeras reuniões e aparições públicas, para desenhar um perfil. É interessante conhecer a mente deste bem sucedido profissional, mas no fundo, as pessoas se interessam por ele tentando replicar seu sucesso. 


Buffet tem uma forte capacidade de desenhar cenários de longo prazo – algo que sinto muita falta no Brasil. Parece conseguir enxergar através da névoa das noticias momentâneas, espremendo apenas o suco, as informações relevantes.

 “Se você fosse um pato em um lago e uma chuva intensa elevasse o nível da água, você também começaria a subir. Mas acharia que é você que está subindo, não a superfície do lago.”

O livro não é técnico, e sua leitura é bastante rápida. Serve bastante para reforçar a necessidade de um olhar sobre a consequência futura de nossas decisões atuais.



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Os Robôs de Isaac Asimov

Eu era garoto na primeira vez que tive contato com o trabalho de Isaac Asimov. Não me lembro sequer do nome do livro. Procurava por literatura de ficção científica -  alguma coisa sobre luta entre galáxias - mas fiquei frustrado. O livro que encontrei na época até tinha uns robôs e especulações sobre o futuro, mas abandonei-o por ter longos períodos com diálogos que me faziam ficar entediado, em minha incipiente experiência como leitor. 

Foi por isso que recebi com desconfiança “Os Robôs e o Império”, das mãos de meu pai. Ele sabia que eu tinha gostado do filme “Eu, Robô” e que este havia sido baseado na obra de Asimov. Valeu muito dar uma segunda chance ao autor! Desta vez, não desgrudei do livro! A experiência de leitura das envelhecidas páginas dessa edição de 1985 foi muito recompensadora!

Mais que ficção científica, Asimov provou ser um exímio futurólogo. Consegue prever o efeito político da evolução tecnológica, bem como as implicações sociais de se ter robôs auxiliando cada uma das tarefas enfadonhas que hoje nos ocupam. Consegue ser muito interessante nos detalhes e manter um ritmo intenso, que torna a leitura muito prazerosa. 

Para manter essa intensidade, conta com muito material, retirado de duas tensões mais importantes. A primeira tensão é a de uma sociedade dividida entre Colonizadores (terráqueos que se espalharam por outros planetas habitáveis), e Espaciais (descendentes dos terráqueos, mas geneticamente melhorados, a ponto de viverem cerca de 400 anos). Nesse pano de fundo, as vantagens e desvantagens da vida longa, e suas consequências sobre a perspectiva de uniões e separações, além da prole “autorizada” ao longo desse tempo. Uma sociedade em que não há mais crimes, pois robôs coibiriam qualquer tentativa de prejudicar outro ser humano, respeitando a primeira das três leis da robótica – as mesmas de “Eu, robô”.

Numa vida longa e sem tarefas enfadonhas, seres humanos modificados perduram, mas para que? Sua satisfação pessoal é ameaçada, pela falta de realizações possíveis, num mundo em que nada precisa ser realmente feito. Sem nossa busca pela felicidade, desenvolvimento e remoção de inúmeros incômodos, estaríamos fadados à decadência e ao vazio existencial? Nesta sociedade, nem o suicídio é uma alternativa aos enfadados, pois os robôs agiriam de maneira veloz para coibir qualquer tentativa de autoflagelo. Seríamos reduzidos a crianças, observadas por seus abnegados “pais” robóticos.



Na segunda tensão – apresentada com muita elegância literária – Asimov nos faz participar dos diálogos entre dois robôs extremamente avançados. Ao acumularem experiências e conhecimentos, tornam suas mentes positrônicas capazes de um diálogo de perguntas e respostas (maiêutica) que os leva a antever movimentos políticos de líderes humanos, agindo à partir daí no interesse da humanidade como um todo – em defesa da primeira lei, e derivações que fazem desta. 

A resultante da coexistência dessas duas tensões permite ao autor levar o suspense até a última frase do livro. Já estou com “Eu, Robô” aqui, e estou virando fâ. E não é preciso me preocupar com falta de material! Asimov escreveu mais de 300 obras!