terça-feira, 15 de março de 2016

A Construção de José de Alencar

Quando você compra um Kindle, a primeira sensação é a de ter gasto uma grana em “literatura”, mas não ter livro algum pra ler. A mídia obrigatoriamente precisa ser preenchida, algo que fazemos aos poucos, conforme nos interessamos pelos títulos disponíveis e os compramos.

Uma grande jogada para aumentar a disponibilidade inicial de títulos é procurar pelos livros gratuitos. Não tem muitas opções nesta lista, mas uma que logo me chamou a atenção foi “COMO E PORQUE SOU ROMANCISTA” – de José de Alencar. Nós, aspirantes a romancistas, obscurecidos pela sombra pesada do fantástico José de Alencar, de Iracema e Senhora, somos atraídos a esta leitura, como se pudéssemos dela tentar beber algum segredo, ou encontrar um atalho para o talento literário.


O que faz um escritor de sucesso? Como estava citado em outro gratuito “101 DICAS para um escritor iniciante”:
“Existem três regras para escrever um romance. Infelizmente, ninguém sabe quais são.” W. Somerset Maugham
Ok. A busca de uma formula mágica é vã – isto eu já sabia. Provavelmente é algo mais complicado que isto. Tem algo a ver com buscar a empatia com sentimentos humanos bastante profundos, se possível compartilhados por diferentes culturas. Mas como tornar-se capaz de traduzir este imaginário coletivo? Como ganhar os leitores?

O livro de José de Alencar não responde, mas tem vários atrativos. Em primeiro lugar, a oportunidade de conhecer nosso idioma tal como era utilizado no Séc.XIX:
“Seria esse o livro dos meus livros. Si n´alguma hora de pachorra, me dispuzesse á refazer a cançada jornada dos quarenta e quatro annos, já completos; os curiosos de anedoctas literárias saberiam, além de muitas outras cousas mínimas, como a inspiração do Guarany, por mim escripto aos 27 annos, cahio na imaginação da criança de nove, ao atravessar as matas e sertões do norte em jornada do Ceará á Bahia.”
Também da época, o zelo na formação infantil, sem as licenças dadas hoje – tratados como pequenos adultos em franca competição:
“Então o excessivo rigor que se me tinha afigurado injusto, tomava o seu real aspecto; e me apparecia como o golpe rude, mas necessario que dá tempera ao aço.”
José de Alencar conta o ritual de vários dias de sua infância, em que a família se reunia para leitura em voz alta dos poucos títulos disponíveis – por vezes de forma repetida, numa época de mercado ainda mais restrito, e de edições relativamente mais caras. A despeito das dificuldades, acumular leituras e ter citações à proposito nas conversas parecia ser de grande distinção - uma habilidade a ser cultivada.

Também mostra que o interesse em ler as novidades que vinham da europa provocavam a necessidade de aprender novos idiomas. Alencar nos relata a luta em aprender o Francês, para que pudesse ler Victor Hugo e outros. Também sua passagem pelos clássicos romanos – uma formação muito mais pesada em ciências humanas.

E para escrever? Cadernos, pena e tinteiro, meus caros. Nada de editores de texto e Google à disposição. Não dá ainda mais admiração pelo que ele conseguiu produzir?




quinta-feira, 3 de março de 2016

A colisão das culturas

When Cultures Collide – de Richard Lewis, infelizmente ainda sem edição brasileira – reflete o esforço do autor em apresentar de forma sistemática as diferentes visões de mundo dos principais países, especialmente para facilitar a comunicação para ambientes de negócios.

Na primeira parte, Lewis, cujo currículo é rico em experiências em diferentes países, permite uma análise bastante ampla do fenômeno das culturas. A comunicação, que é influenciada pelas características da linguagem. Fatos históricos, que fazem prevalecer certos valores, ou criar oposições e preconceitos a diferentes povos, backgrounds religiosos diversos, etc. 

Todo este caldeirão interfere no ambiente em que as pessoas são criadas, e determinam a ênfase em determinados valores.

“Buses in Madagascar leave (…) not according to a predetermined timetable, but when the bus is full” (em tradução livre: os ônibus em Madagascar saem, não segundo um cronograma predeterminado, mas quando fica cheio)
“When Americans ask for whiskey, they mean bourbon; if they want whiskey they say Scotch” (quando os Americanos pedem uisque, eles querem dizer “bourbon”. Se quisessem uisque, diriam “scotch”)
Poucos de nós consegue fazer uma análise isenta da realidade de outro povo. Dessa diferença fundamental surgem muitos mal-entendidos, ou atrasos na necessidade de trabalho em equipe numa sociedade de consumo globalizada.


A segunda parte, é formada por capítulos dedicados aos principais players do mercado global. Assim, torna-se um livro de referência, mostrando como se comportam diferentes povos, notadamente Europa, América do Norte e Ásia. Na América do Sul, falam de vários também. A despeito do meu temor, não cai em clichês, ao menos quando falam do nosso Brasil.

O que falam do Brasil?

“Brazilians like to grab at easy, immediate solutions, the result often being a lack of long-term planning.” (Brasileiros comprometem-se com facilidade com soluções imediatas, frequentemente sendo o resultado a falta de um planejamento de longo termo).

Achei muito justo.Vale a leitura – que por enquanto requer o domínio do inglês.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Sapiens, Uma breve história da Humanidade – Yuval Noal Harari

Não é sempre que um livro me absorve tanto. Veio para o seleto grupo dos meus top-10 favoritos e digo sem exageros que mudou meu modo de ver o mundo. Confirmou muitas ideias e ampliou tantas outras.

O que faz o autor me impressionar tanto é a sua escolha de argumentação. Deixa de lado as interpretações da realidade mais usuais – aquelas verdades e interpretações de mundo baseadas nas informações de nossa experiência, ou de nossos amigos e professores – e elevar esta escala de experiências a um plano da espécie. Ou seja, mais do que julgar se determinada religião ou ideologia política é boa ou ruim para nossas medidas transitórias, e morrer na praia dos argumentos de lado a lado – que tal olhar para trás e identificar o que estas ideias determinaram de REAL em nosso modo de vida, e como isso foi válido do ponto de vista da perpetuação da espécie: 

“Um número cada vez maior de estudiosos vê as culturas como um tipo de infecção ou parasita mental, sendo os humanos seus hospedeiros involuntários. Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando”(...)”Essa abordagem ás vezes é chamada de memética”

Resultado de imagem para Sapiens, Uma Breve história da humanidade – Yuval Noah HarariNessa ótica, o autor questiona verdades religiosas e políticas de tal forma que, se você preza essas crenças de maneira arraigada, pode se ofender. É até algo interessante para se auto-observar. Você vai manter a mente crítica? OU vai ficar p... da vida quando sua crença querida estiver sob a lupa do autor? Sua perspectiva antropológica tenta reduzir as questões a seus aspectos evolutivos. Para que serve - por que evolutivamente um determinado modo de agir ou pensar permaneceu vivo geração após geração. 

É claro que como todo texto, você ainda pode enxergar as nuances ideológicas do autor, mas é extremamente enriquecedor à medida em que emparelha mecanismos de controle social, a adaptação de nosso organismo a fatores importantes de nossa história, como mudanças climáticas, a “revolução agrícola”, a vida em aglomerados urbanos. Ao apresentar esses eventos pouco discutidos, mas tão importantes de nossa história, somos desafiados a uma nova forma de pensar:
“As plantas domesticaram o Homo sapiens, e não o contrário. Pense por um instante na Revolução Agrícola do ponto de vista do trigo. Há dez mil anos, o trigo era apenas uma gramínea silvestre, uma de muitas, confinada a uma pequena região do Oriente médio. De repente, em apenas alguns milênios, estava crescendo no mundo inteiro.”
Pretendo revisita-lo periodicamente, como literatura fundamental. E tão denso e interessante, que ao revisar meus grifos, enchi mais de três páginas em letras miúdas. 



Abaixo, alguns dos trechos mais provocativos. A característica jocosa do texto é um bônus:

Quando explicita que quando passamos a plantar, foi inevitável que se criassem sistemas de proteção do trabalho nas plantações. A propriedade e sistemas de poder seriam inevitavelmente criados. O “nós” contra “eles” também:

“A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer. Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais e elites favorecidas” 
“Em consequência, desde o advento da agricultura as preocupações com o futuro se tornaram atores importantes no teatro da mente humana” 
“O estresse representado pela agricultura teve consequências importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de grande escala”

Ao explicitar a luta entre “liberdade” e “igualdade” – na onipresente discussão entre esquerdas e direitas: 

“A era moderna testemunhou a ascensão de uma série de religiões baseadas em leis naturais, como o liberalismo, o comunismo, o capitalismo, o nacionalismo e o nazismo."
“Enquanto os humanistas liberais buscam tanta liberdade quanto possível para os indivíduos humanos, o humanismo socialista busca a igualdade entre todos os humanos.”
“ É fácil para nós aceitar que a divisão das pessoas em”superiores” e “comuns” é produto da imaginação. Mas a ideia de que todos os humanos são iguais também é um mito. Em que sentido todos os humanos são iguais uns aos outros? Existe alguma realidade objetiva, fora da imaginação humana, em que somos verdadeiramente iguais?”
“Acreditamos em uma ordem em particular não porque seja objetivamente verdadeira, mas porque acreditar nela nos permite cooperar de maneira eficaz e construir uma sociedade melhor”
“Voltaire afirmou, a respeito de Deus: “Deus não existe, mas não conte isso ao meu servo, para que ele não me mate durante a noite”.(...)“O Homo sapiens não tem direitos naturais, assim como aranhas, hienas e chimpanzés não têm direitos naturais. Mas não conte isso aos nossos servos, para que eles não nos matem durante a noite”
“A história da ética é um conto triste de ideais maravilhosos que ninguém consegue colocar em prática. A maioria dos cristãos não imitou Cristo, a maioria dos budistas não conseguiu seguir os passos de Buda, e a maioria dos confucianos teria causado um ataque de nervos a Confucio.”
 “Nos últimos dois séculos, a moeda da política são promessas de destruir o velho mundo e construir um mundo melhor em seu lugar. Nem mesmo o mais conservador dos partidos políticos promete meramente manter as coisas como estão”

A relação de amor e ódio com os mercados e a economia (troca de trabalhos entre humanos):

“os ganhos e a prosperidade trazidos pelo imperialismo romano propiciaram a Cicero, Seneca e Santo Agostinho o tempo livre e os recursos necessários para pensar e escrever”
“os lucros do império de Habsburgo, provenientes do domínio sobre suas províncias falantes de eslavo, húngaro e romeno, pagaram os salários de Haydn e as comissões de Mozart.”

A influência das religiões na legitimação das ordens sociais:

“As pessoas são diferentes, não porque Hamurabi disse isso, mas porque Enlil e Marduk decretaram isso. As pessoas são iguais não porque Thomas Jefferson disse isso, mas porque Deus as criou dessa maneira. Os livres mercados são o melhor sistema econômico não porque Adam Smith disse isso, mas porque essas são as leis imutáveis da natureza”
“Portanto, o primeiro efeito religioso da Revolução Agrícola foi transformar as plantas e os animais de membros iguais de uma mesa-redonda espiritual em propriedade.”
“Como os monoteístas costumam acreditar que são detentores de toda a mensagem de um único Deus, são compelidos a descrer de todas as outras religiões."
“Na verdade, o monoteismo, tal como se desenvolveu ao longo da historia, é um caleidoscópio de legados monoteístas, dualistas e politeístas que se misturam sob um único conceito divino. O cristão típico acredita no Deus monoteísta, mas também no Diabo dualista, em santos politeístas e em fantasmas animistas”

E um olhar crítico a todo e qualquer sistema – porque não importa o quanto digam que são “naturais” ou “de inspiração no bem” – todos são inventados, e há que se perceber e avaliar os prós e contras de suas premissas básicas:

“infelizmente, sociedades humanas complexas parecem exigir hierarquias imaginadas e discriminação injusta”
“Diferentemente das leis da física, que estão livres de inconsistências, toda ordem criada pelo homem é cheia de contradições, e esse processo alimenta a mudança.”
“Pessoas do mundo inteiro pouco a pouco passaram a ver a igualdade e a liberdade individual como valores fundamentais. Mas os dois valores são contraditórios”
“Da mesma forma que duas notas musicais discordantes tocadas ao mesmo tempo colocam em movimento uma composição musical,  a dissonância em nossos pensamentos, ideias e valores nos compele a pensar, reavaliar e criticar. A consistência é o parque de diversões das mentes entorpecidas”
“As pessoas continua a conduzir uma luta heroica contra o racismo sem perceber que a frente de batalha mudou, e que o lugar do racismo na ideologia imperialista foi substituído pelo “culturismo”. A palavra “culturismo” não existe, mas já está em tempo de a inventarmos”
 “...que permite que os bancos – e toda a economia – sobrevivam e floresçam é nossa confiança no futuro. Essa confiança é a única garantia para a maior parte do dinheiro do mundo” (...) “O recurso econômico mais importante é a confiança no futuro, e esse recurso é constantemente ameaçado por ladrões e charlatães”